A couve do povo Português

Neste texto o autor busca elogiar aquele povo português dotado de uma incrível capacidade de adaptação a toda a parte do Mundo. Sim, as capacidades dos ancestrais Lusitanos em naufragar jamais se perderão, tal como as suas capacidades de colonização. O povo português mantém-se digno à reputação herdada. Portanto, a sua couve, a couve portuguesa, não será diferente dos Lusitanos, portando também as suas raras qualidades de adaptação e universalismo. De momento, nada contra.

Contudo, observa-se um apontamento negativo. Durante dezassete anos um emigrante português viajou de sementes no bolso à procura de terra fértil. Dezassete anos? Não há que duvidar das suas capacidades de viajante, isso é impossível. No entanto, seria realmente necessário este homem submeter-se a tanto esforço e sacrifício somente para semear uma mão cheia de sementes? Não. Há algo que tolda a visão não só deste homem mas de todo o povo português. Apesar de bons viajantes somos maus em progredir e o autor revela-nos esse mesmo defeito. Este homem uma vez nascido e criado como agricultor, já não mais altera. Tudo o que viu ao longo da sua viagem e tudo o que conheceu em nada alteraram o seu trajecto. Qual professor, carpinteiro ou escritor, ele era agricultor.

Talvez, divago eu, este nosso defeito que teima em desaparecer nos tenha levado para a crise financeira. A falta de vontade dos Lusitanos em progredir é ainda evidente e limitante. Portugal, o seu povo e tudo o resto, tem que inovar. Largar as suas raízes e arriscar nesta realidade adversa que tão doce se pode fazer sentir.

Tal falta de capacidade do povo português não há-de ser tomado de animo leve, contudo não há pior que a desvalorização do nosso país. Outrora os marinheiros de Gama ficariam conhecidos pelos seus corajosos feitos, actualmente é a couve que atinge os 2,40m. A partir de que momento se tornou Portugal num povo que se faz conhecer por algo tão pequeno? Numa balança, embora gigante, a couve não se equivale aos feitos de outrora. No entanto, “o viajante português do século XX declara-se feliz, realizado, pleno” com o seu feito. Mais uma vez, não me refiro somente a este decerto humilde homem mas ao povo Português que se faz conhecer por uma couve.


"... e vai se a ver saiu-me isto: uma dor no coração, uma sensação de ser folha migada, uma dura e pesada tristeza."
José Saramago

Avé-Marias

O Sentimento dum Ocidental
Avé-Marias

Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar alguns hotéis da moda.

Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se os arsenais e as oficinas;

Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!


A 1ª parte de “O Sentimento dum Ocidental”, Avé-Marias, é considerado por alguns críticos como uma “epopeia às avessas” que nos dá uma visão da cidade como metáfora do Ocidente, paradigma de um pretenso progresso e desenvolvimento. Avé-Marias designa as seis da tarde ironicamente sugestiva da organização da vida segundo os ritmos ordenados de uma comunidade unida pela devoção religiosa. Este poema, numa análise mais detalhada, transmite-nos o pensamento e as emoções de um poeta que não cabe nem em casa, nem em si mesmo. Deste modo, Cesário Verde sente a necessidade de divagar por aquela cidade que o aprisionava e atormentava.

À medida que o sujeito poético deambula pelas ruas do Tejo descreve vários espaços citadinos – edifícios em construção, “boqueirões”, “becos”, “varandas”, “arsenais”, “oficinas”, “hotéis da moda” –, referindo as personagens urbanas que nele se movimentam – “carpinteiros”, “calafates”, “dentistas”, “obreiras”, “varinas”, “um trôpego arlequim”, “os querubins do lar”, os “lojistas”.

Dotado de uma percepção da realidade fora do vulgar, o poeta transmite e amplifica os seus sentimentos através da descrição de uma realidade paralela. “O céu parece baixo e de neblina”,“Semelhem-se a gaiolas” – o sujeito poético demonstra o seu mal-estar e o seu enclausuramento na cidade. Assim, de modo a fugir do que o rodeava, o sujeito poético acompanha imaginariamente a partida dos “que se vão”. “Felizes”, exprime ainda o poeta no sentido de também ele querer partir e de se sentir feliz. Por este motivo, o sujeito poético abstrai-se noutros países como “Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo” e para reforçar o seu desejo de fugir apenas do que o rodeava, ele abrange todo o “mundo”. Todo e qualquer lugar seria mais agradável que a realidade que o cercava.

Perde-se este pensamento e de volta ao seu corpo, o sujeito enfrenta a dura realidade. Edifícios emadeirados semelham-se a gaiolas, mestres carpinteiros a morcegos. Encontra o cais. A água, o rio, o mar. Abstrai-se no passado heróico português. O povo português que enfrentava as grandes tempestades em majestosas naus. Camões que enfrentou, a nado, as correntes para salvar os “Lusíadas”. “Mouros, bacharéis, heróis, tudo ressuscitado!” na sua mente. Na realidade a história era diferente. Os actos épicos e dignos de percorrerem todo o mundo, como as crónicas navais, deixaram de acontecer. Por este motivo, o poeta confessa a sua tristeza dos dias de glória terem terminado e receia que tais actos não se vejam novamente.

“E o peixe podre gera os focos de infecção”. Não são actos épicos que esperariam o nosso insatisfeito poeta mas sim doenças e morte. Ele sabia-o, o sujeito poético encontrava-se ciente das doenças que a cidade sustentava. Aquele lugar caótico e dinâmico, como o autor dá a entender nas últimas estrofes, seria algo a temer e não a habitar. No entanto, as varinas habitavam essa cidade amontoadas num bairro, “Descalças!”. O sujeito poético demonstra-se, assim, solidário para com as varinas pois estas seriam apenas mais algumas vítimas da sociedade urbana.

Sob o ponto de vista estilístico, na estrofe nove, é possível verificar uma descrição dinâmica e impressionista – "Vazam-se os arsenais e as oficinas", "apressam-se as obreiras", "Correndo com firmeza, assomam as varinas"; percepção sensorial – "Reluz, viscoso, o rio" (sinestesia), "E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras"; recurso à metáfora elaborada a partir da associação entre as personagens e os seus "instrumentos" de trabalho – "cardume negro".



“O cenário humano geral, com que Cesário Verde depara, potencia o aparecimento de muitos outros cenários. E isso porque a história que ele conta não é sequencial nem linear mas encerra em si muitas outras histórias, carregadas de vivências pessoais do Poeta, embora literariamente transformadas”.
J. Serrão, 1986

Eça de Queirós e a Arte da Ironia

Quem melhor que Eça para nos dar a conhecer o significado de Ironia? Sem dúvida que existiram alguns escritores de renome que manipularam incrivelmente bem a Ironia como Baudelaire ou Voltaire. No entanto, torna-se impossível comparar Eça com os escritores do seu tempo dado que este apresenta-se com uma perspectiva da realidade distinta de qualquer outro escritor.

Tem-se afirmado ser Eça o Zola português, mas o naturalismo expresso pelo escritor francês nunca foi presença absoluta na sua escrita, antes elemento subalternizado, do qual se libertou pelo pessoalismo da sua arte. Segundo Ernesto Guerra da Cal, “a sua evolução foi lenta, harmoniosa, intensa. A disciplina férrea de observação aquietara a sua fantasia e serenava a sua forma. Conquista então a sua “maneira” inconfundível, sugestiva e irónica, síntese consciente dos dois pendores contraditórios da sua psique: o impulso atávico do seu temperamento para a livre imaginação, o lirismo e a eloquência, dum lado; e do outro a tendência, adquirida mercês da educação positivista, para uma percepção clara e imediata dos elementos objectivos da realidade e o desejo de exacta expressão deles, sem desdenhar, ou mesmo procurando-lhe, os aspectos prosaicos, feios ou baixos”.”

Carlos Leite Ribeiro

Eça é um homem inconfundível, como Ernesto da Guerra nos mostra na sua tese de doutoramento, no entanto esforça-se por aparecer como um homem comum, protegendo se atrás de uma sociedade industrializada e democratizada. Ao analisar as obras deste escritor é possível observar que Eça não se encaixava tão facilmente na sociedade como pretendia. Um escritor exímio e hábil no uso da palavra e da ironia destaca-se demasiado na sociedade que continuamente eliminava o mínimo resquício de excepcionalidade. “Neste país, no meio desta prodigiosa imbecilidade nacional, o homem de senso e de gosto deve limitar-se a plantar com cuidado os seus legumes.” Revela-nos ironicamente o autor através de Ega.

Naturalmente, a crítica social é o tema mais visado pelo autor. Deste modo, Eça esforça-se por nos dar um panorama do país que embora pejorativo não deixa de ser divertido. O Sr. Dâmaso Salcede, por exemplo, que de forma “chic a valer” apresenta a degradação moral, a hipocrisia, o jogo de influências políticas e a falta de ideias da imprensa. Ou então situações como a corrida de cavalos que termina com uma pancadaria “ que vem a quebrar todo o verniz da civilização”. Esta característica de Eça em levar a critica ao extremo do ridículo tornando-as mais fáceis de digerir, torna este autor numa fera indomável capaz de nos ferir com as mais belas palavras.

Algo ainda característico em Eça é a consistência do autor em partilhar com algumas personagens os seus entusiasmos, receios, fobias e alguns aspectos autobiográficos que nos levam a idealizar este autor. No entanto, os sentimentos ou acontecimentos da vida que Eça nos revela nunca acarretam dramatismo ou romancismo porque o autor se proíbe a faze-lo. Ele defende-se de tomar confissões demasiado íntimas deixando o que poderia ser um desabafo sentimental cair em ironia, ás vezes melancólica, mas quase sempre risonha.

Desde muito novo, que Eça se protege atrás da ironia, por um lado, devido à falta de afecto que recebeu na sua infância e, por outro, devido à pesada ordem burguesa em que foi criado. Com efeito, Eça mostrara um grande interesse na literatura e a sua formação em direito na universidade de Coimbra ficara marcada por alguns escritores como Garret e Herculano. Românticos de outro tempo que recorriam ao uso da prosa narrativa de grande alcance e profundidade. Mas o povo encontrava-se saturado destas extensas prosas melancólicas que não iam dar a lado nenhum. Eis então que surge Eça de Queirós impregnado de uma espectacular e inovadora arte narrativa, revelando um humor caricatural, que terminaria com o tédio do povo. Deste modo, Eça submetia a Língua Portuguesa a uma mutação que iria abalar os pilares do Ultra-romantismo.

“O naturalismo, (…) essas rudes análises, apoderando-se da Igreja, da Realeza, da Burocracia, da Finança, de todas as coisas santas, dissecando-as brutalmente e mostrando-lhes a lesão, como a cadáveres num anfiteatro; esses estilos novos, tão preciosos e tão dúcteis, apanhando em flagrante a linha, a cor, a palpitação mesma da vida; tudo isso, caindo assim de chofre e escangalhando a catedral romântica.”

Pagina 134, de “Os Maias”

Eça de Queirós, no entanto, aceita partes do romantismo como uma herança genuína entregue à sua geração de intelectuais, Geração que viria a revolucionar a cultura portuguesa. A denominada “Geração de 70” composta por jovens que estudaram na universidade de Coimbra como Antero de Quental, Ramalho Ortigão, Eça de Queirós, Guerra Junqueiro, entre outros que representavam uma revitalização do Ultra-Romantismo. Neste novo romantismo latejava, porém, uma inquietação partilhada por Eça e João da Ega. O receio, que Ega reconhece, de que tanto Carlos da Maia como ele próprio não passaram afinal de “românticos”, isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento e não pela razão…”

Deste modo, o próprio autor, através da sua personagem autocaricatural, revela-nos com algum desgosto a impossibilidade de alterar Portugal. A sociedade que teimava em reger-se pela emoção e que nem as leituras actualizadas, nem a educação inglesa, nem as viagens pelo estrangeiro podia alterar. Como tal, o objectivo da geração de Eça, de instaurar um novo intuito pedagógico baseado na razão fracassara.


Uma comoção passou-lhe na alma, murmurou, travando do braço do Ega:

— É curioso! Só vivi dois anos nesta casa, e é nela que me parece estar metida a minha vida inteira!

Ega não se admirava. Só ali, no Ramalhete, ele vivera realmente daquilo que dá sabor e relevo à vida — a paixão.

— Muitas outras coisas dão valor à vida... Isso é uma velha ideia de romântico, meu Ega!

— E que somos nós? — exclamou Ega. — Que temos nós sido desde o colégio, desde o exame de latim? Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento, e não pela razão...

Mas Carlos queria realmente saber se, no fundo, eram mais felizes esses que se dirigiam só pela razão, não se desviando nunca dela, torturando-se para se manter na sua linha inflexível, secos, hirtos, lógicos, sem emoção até ao fim...

— Creio que não — disse o Ega. — Por fora, à vista, são desconsoladores. E por dentro, para eles mesmos, são talvez desconsolados. O que prova que neste lindo mundo ou tem de se ser insensato ou sem sabor...

— Resumo: não vale a pena viver...

— Depende inteiramente do estômago! — atalhou Ega.”

Pagina 593, de “Os Maias”

Só a paixão dá sentido à vida – é a conclusão paradoxal a que chegou João da Ega. A personagem que mais combateu a literatura e a sensibilidade romântica rende-se por fim.


À pergunta “Quais os escritores que mais o influenciaram?”, Vergílio Ferreira respondeu: “Em primeiro lugar, o meu sempre admirado Eça. Não o do adultério, etc., como é óbvio. Nem mesmo o da graça por mais fina. O outro. O que sobra ain­da desses. O da palavra.”